poema liquefeito



Espirro, pigarreio, gaguejo, e, no entanto, narro-se, canto-o, recito-lhe, reescrevo-te, releio-me – somente assim inscrevo-me numa, ainda tenra, manhã anunciadora de iminente verão, o sol quase retinto.

Vou, por entre a fina neblina que se vai rapidamente dissipando, mais e mais.

Vou, mascando malva sem sequer levá-la ao lábio, porque é o hálito dela (carregado pela revolução da aragem, esta que, nascida da friagem lenta da madrugada, de uma hora para outra desata a esquentar) que prepondera.

Vou, tangendo do olhar o velame que infesta, com sua ferrugem entremeada de um verde asqueroso, o campo encravado num elevado ao lado que há tempo não se lavra.

Vou, ferindo-me com surpresa, e sofrendo pequeninhos sangramentos, nos cutelinhos, e nos canivetes serrotadinhos em seus dois gumes, das macambiras e dos gravatás, esses priminhos cangaceiros vegetais que vivem atocaiados na caatinga assaltando passantes.

Vou, desviando-me com gosto do ferrãozinho dos cansanções, e até pulando, sobre os menorzinhos deles, sempre que os defronto, solertes, a dois palmos, ou menos, de meus pés.

Vou, varando com o olhar tudo o que à frente se me alumia, feito como mais tarde passei a varar, sob mil ou nenhum refolho, a noite espessa da nudez de uma pessoa amada.

Vou, por esse taquinho de sertão dos Tocós, fornicando-me na brisa, ainda acariciosa, dessa hora.

Vou, então, sob os raios quase plenos do sol do segundo domingo de dezembro de 1973.

Vou, e sei. Sei que momentos antes deste dia se embrenhar, de vez, na noite, partido de uma estrela distante, abalando-se desde o zênite até um norte incógnito no horizonte, numa velocidade, a um só tempo, cristalizada e estonteante, riscará o espaço, de súbito, um círculo-íris, ovaloidal, cavo bem no meinho, orifício, por sinal, crescente no trajeto, e entrepiscante a intervalos tão rápidos quanto uns olhos possam pestanejar, e do outro lado do qual, detrás de todo entrepiscar, se verá, como nunca, o céu pipocando estrelinhas no breu.

Mas era manhãzinha ainda, e eu ia, menino e medonho, flanando, flanando.

Eu ia, e parei sob a frondosa e estercorária Quixabeira, não tão alta para mim.

Eu ia, e recostei-me nela prum ínterim.

Eu ia, e fiquei ali, sanfonando pulmões, salpicando vista, tato, olfato e audição no derredor.

Nenhum canto de cardeal, nem de fogo-pagou. Nenhum nambu pasmo ante a incursão de algum animal rasteiro metralhou vôo cego de fuga. Nenhuma caçutinga imiscuiu o odor acre de seus primeiros suores matinais no ambiente ainda defumado só com o hálito da malva.

Embaixo da árvore, toda uma superpopulação de seres, incomunicáveis para mim, já se pusera a fermentar ao sabor daqueles primeiros calores do dia. Revolvi desde carrasquentinhos caracóizinhos amarronzados, queimantes lagartinhas pardacentas, até visguentas minhocas carmesins.

Mirando para cima, para um dos galhos mais robustos da árvore, percebi pequena colméia de abelhas aninhada na sua junção com o caule.

Esguelhei-me, esticado na ponta dos pés, e dei de cara com uma sentinelazinha, ar de poucos amigos, postada na portinhola da colméia.

Por certo inquietara-se, já, com o só zumbido de meu respiro, e muito mais com aquele meu voar sem asas.

Ela ia, lá dentro, ela vinha. Ia, e vinha. De repente, prontificou-se imóvel na porta, contudo acesa de atenção. Não arredou mais pé. Não sei quanto tempo ficáramos, ambos, principiando aquele joguinho de peixinho, peixão, aquário e troca de perspectiva de observação. Acho que mais do que o necessário para que eu sentisse os pés, cara e pescoço doídos com aquela posição.

Volteei-me, afinal, sobre a planta de meus pés, e relaxei os músculos inteiros do corpo pilando, de leve, os despojos intoleráveis da Quixabeira, traduzidos em folhas e flores mortas, talos e toda sorte de filamentos dela facilmente despreendíveis, ramos jovens quebrados por algum vento raivoso, cascas de variado tamanho, e demais crostas não apenas do caule, mais para secos e estéreis lá pela borda, mas sob os meus pilõezinhos bem humificados.

Deixei minha abelhinha, sem querer, de lado, e em paz? Ela também deixou-me? Dei uma segunda esguelhadela, e vi que não.

Pouco além da orla da Quixabeira, abaixo, em conúbio não apenas com a malva, já rarefeitos nalguns pontos, e noutros ainda em forte concentração, compondo mantinhos sobre a rala vegetação, vislumbrei os olhinhos d’água do orvalho em sua última intensidade de rebrilho.

Com miúdos passos, projetei-me para lá, e, prostrando-me diante do mantinho mais pródigo topado, funguei-o ali, retendo fundo seu frescor em meu peito, enquanto minhas mãos arrelvavam-se, e rearrelvavam-se, em meio a entrançadas folhinhas, de mil globinhos.

Regressei, logo em seguida, na direção de minha sentinelazinha, e, desta vez, com imenso cuidado, dei mais outra esguelhadela, regurgitando-me, ao reencontrá-la, de contente por havê-la ali, e creio já contentada de haver-me.

Mortos, nós, ambos, todos, qualquer um - penso que então pensei -, tudo não se terá perdido, inclusive o não ganho, não percebido, não sonhado, não vivido, o não partido... nem vindo?

Mãos em concha, mescladas nelas duas lembranças, a do frescor volátil daqueles globinhos, e a do calor de meu sangue, que naquele instante por dentro todo se me retinia, até estalar inteiriço em meus dedos, encosto-as aos ouvidos agora, como o fiz outrora, na esperança de só assim ouvir ressoar a música de uma estrela: para onde nunca fomos, nem jamais iremos - mas da qual somente eu parti?

[Conto-poema]