vento do verbo



Eis-me, aqui, só e meditativo, levado no dorso elefantino das palavras. E do alto de um palanquinho macio, balouçante, refestelado sobre uma delas, eu as vejo a todas. São tão alvas, brancas, de um alvor marfíneo, como somente este, sem falar na esfiapada barba, alvor dos cabelos que me restam e teimam em esvoaçar por trás de minha fronte calva, que por certo desde todo o sempre estiveram, e para sempre estarão, presentes (implícitas, latentes) na palidez mesmo que encardida da voz ou do papel.

Mais nada tenho a dizer. Alguém tem algo a dizer, e mesmo a quem mais dizer, além do que já o diz o ir e vir do sangue em seu corpo? Profiro isso e reflito sobre o dia em que ainda precipitarei num rio que me desaguará para fora de mim mesmo.

Algo me compraz dizer ou escrever, contudo, que da perspectiva desses olhos ou ouvidos que me espreitam, desde aquele Eis-me, as palavras sejam constelações de estrelas negras descrevendo as mais variadas e inusitadas órbitas enquanto dura a noite branca e lisa da fala ou da página. Assim os trejeitos do existente. Mistura de rotas. Reviramentos. O descolar e reacomodar de sedimentos. Passarás a chamar-se Li T’ai Po. Reouço rumores da cerimônia de minha iniciação e propiciação. Ausculto os ritos. E a ti, desse posto, é destinado soprares um vento que desentranhe a entranha das coisas: para que nasças e morras com elas. A voz do preceptor se torna mais perceptível. Aquece-me o corpo inteiro com seu hálito. Mas cuida-te, já que para malograres basta disjuntares o seres do estares.

Disso me rio, e, no entanto, sem alarde, vagueando pelo tempo, ou indo e vindo, sorrateiro, pelas frinchas do espaço, adentro estórias, executando a minha arte combinatória. Um homem rude sopapa-me e conduz-me pela mão. À altura de meu rosto ostenta um carrasquento peixe azul-acinzentado - burburinho no mercado. A menina mais escorregadia que sabão. O velho ressecado feito casca de árvore. Vapor, torpor, gritinhos, murmúrios - durante o banho público. Atravesso longa faixa de papoulas. Segregam silêncios. Deparo-me com um mar pardo. O humor bilioso que se revolve ininterruptamente em suas águas. Exaspero-me. Pernas de mulher em escancaro. Rangei, portas. Em meio a pêlos eriçados e peles ociosas, o vulcão convulso - que, regando-se de um orvalho viscoso, sorve-me em seus rubores e arrota-me amoniacados odores.

Mormaço. Nuvens-palavras adensam. Preparam trovejamentos. Vento. Não sente o vento com que tudo cimento? Eis, nada mais que isto, aquilo que invento. Lampeja o primeiro, o último, o próximo, este, aquele, agora, corisco.

[Fantasia para conto-canto]